Há muito tempo que não lia um livro de BD. Tenho de confessar que não é o meu género de eleição e, se não fosse a recomendação do Jorge, também não me teria interessado por este. Mas ainda bem que o fiz. Declaradamente autobiográfico, este livro foca com uma ironia cáustica alguns dos momentos mais marcantes da infância, adolescência e início da idade adulta da protagonista Alison, que até no nome é idêntica à Autora: a personalidade peculiar do pai, a evolução da sua relação com ele, o falhanço ensurdecedor do casamento dos pais, a homossexualidade e pedofilia do pai, a descoberta da sua própria sexualidade, a sua identificação como lésbica, o suicídio do pai.
Os dois traços mais marcantes desta obra são, sem dúvida, o sarcasmo corrosivo e as omnipresentes referências literárias. Estas últimas servem, aliás, para definir as próprias personagens e até para impulsionar o rumo da história: Alison descobre que é lésbica ao consultar um dicionário e a sua epopeia de descoberta dessa tendência sexual, que ela própria compara à Odisseia de Homero, é feita, essencialmente, através da leitura; o pai tem uma predilecção por Fitzgerald e ele próprio apresenta fortes semelhanças com Gatsby, com laivos de Camus, Proust e Wilde; a mãe é comparada a uma personagem de Henry James e o início da relação entre os pais apresenta vários pontos em comum com o enredo de Retrato de Uma Senhora; a interacção de Alison com o pai, que no início quase não existe, vai-se fortalecendo à medida que ambos aprendem a tirar partido de um traço comum aos dois: o gosto pela leitura. Aliás, a descoberta por Alison do seu lesbianismo é, em grande parte, despoletada por um livro de Colette que lhe é recomendado pelo pai. Talvez devido a esse interesse em comum (o único além da inclinação estética por homens, ele desejando possuí-los, ela desejando assemelhar-se a eles), apesar de apontar sem qualquer clemência os inúmeros defeitos do pai, Alison nunca chega a condená-lo. Afirma mesmo encará-lo com alguma compreensão.
Embora a profusão de alusões literárias, que evocam constantemente as referências do leitor, transformem este livro numa experiência pessoal e por isso fascinante, o que mais me cativou foi o olhar desassombrado sobre as fraquezas humanas em geral e, muito especialmente, sobre o complexo carácter do personagem “pai”. Diria mesmo que, para mim, o primeiro capítulo, onde é feita a caracterização do pai enquanto pessoa, é a parte mais bem conseguida do livro – será a parte mais amarga, a mais chocante até, mas é também aí que a impiedade do retrato traçado atinge o seu auge.
Excertos:
“Às vezes, quando as coisas corriam bem, creio que o meu pai gostava de ter uma família.
Ou, pelo menos, do ar de autenticidade que conferíamos ao seu cenário. Uma espécie de natureza-morta com crianças.
E, claro, eu e os meus irmãos éramos mão de obra gratuita. Via-nos como extensões do seu próprio corpo, como braços robóticos de precisão.” (pág. 19).
“O meu pai começou a parecer-me moralmente suspeito muito antes de descobrir que guardava um terrível segredo.
Usava o seu habilidoso engenho não para fazer coisas, mas para fazer com que as coisas parecessem aquilo que não eram.
Ou seja, perfeitas.
Por exemplo, aparentava ser um marido e um pai ideal.
Mas que marido e pai ideal teria sexo com rapazes adolescentes?
Apetece dizer, olhando para trás, que a nossa família era uma fraude.
Que a nossa casa não era um verdadeiro lar, mas uma imitação, um museu.
No entanto, éramos uma família, e vivíamos mesmo naquelas salas de época.” (págs. 22-23).
“Foi um bom pai? Gostaria de poder dizer: «Pelo menos, estava sempre lá.» Mas claro que não esteve.
É verdade que só se matou quando eu já tinha quase vinte anos.
Mas a sua ausência teve efeitos retroativos, ecoando através do tempo em que estive com ele.
Talvez seja o contrário da dor que se sente num membro amputado.
Esteve realmente lá durante todos aqueles anos, uma presença de carne e osso, a limpar o papel de parede com vapor, a plantar arbustos, a polir os cromados…
… a cheirar a serradura, a suor e a perfume de marca.
Mas doía-me como se já não existisse.” (págs. 28-29).
“Faço estas alusões a Henry James e Fitzgerald não apenas como instrumentos descritivos, mas porque os meus pais são mais reais para mim em termos ficcionais.
E talvez essa própria fria distância estética consiga transmitir melhor o clima glacial da minha família do que qualquer comparação literária.” (pág. 73).
“Ulisses foi, naturalmente, proibido durante muitos anos por pessoas que consideravam obscena a sua honestidade.” (pág. 234).
Confesso que me deixou curiosa…
Mais um belíssimo texto da Sónia que desta vez se aventurou pela BD. Não creio que alguém fique indiferente a “Fun Home”. Para mim, foi igualmente uma surpresa sendo um dos grandes livros publicados em 2012.
Gostei muito. O que só prova que as primeiras aparências nem sempre são de fiar. A BD pode dar mais que pensar do que muita da prosa que por aí anda…
Será que alguém me pode explicar como funciona a roda de livros? por casualidade cai neste endereço e gostei da ideia de partilhar. gosta de emprestar livros e quando mos devolvem gosto sempre que também os assinem e não me importo que assinalem ou marquem os livros. deste modo apercebo-me de pormenores que talvez me tenham falhado. Na realidade o que eu faço sem metido é o que vós colocaram em prática.
Acabei agora de ler o libro desumanização. tinha lido os únicos 3 livros de islandeses editados em português…e já desaparecidos das editoras e fiquei curioso com um autor português escrever “islandês” e toda a sua natureza telúrica.
my best third. o my best 2nd é “O quarteto e Alexandria”.
Obrigada pelo seu comentário. A Roda dos Livros é uma comunidade de leitores que se reúne mensalmente na Biblioteca Municipal dos Olivais para conversar sobre livros e partilhar leituras.
Acabei de ler este livro. É brutal!
É mesmo. E também há um filme, mas não achei que tivesse o mesmo impacto.
Ola, gostava de saber se este livro é aconselhavel para uma Jovem de 14 anos ?? Obrigado
Olá, não vejo porque não. Não me pareceu chocante, apenas uma lição de vida bem-humorada. No entanto, em caso de dúvida, talvez seja melhor lê-lo primeiro e formar a sua própria opinião.
Obrigado, de qualquer forma é mais seguro ter uma segunda opiniao!