Desconhecido Nesta Morada, publicado em 1938, é o livro de maior sucesso de Kathrine Kressmann Taylor (1903-1996) apresentando-nos uma visão quase profética, no mínimo tenebrosa daquilo que iria acontecer nos anos seguintes, no decorrer da 2ª Guerra Mundial, à medida que a Alemanha Nazi ia ocupando uma parte significativa da Europa ao passo que milhões de judeus iam sendo enviados para campos de concentração para posterior tortura e consequente execução, não esquecendo os horrores por que passaram.
Partindo de histórias reais que Kathrine Kressmann Taylor conheceu bem de perto através de alemães que tinham vivido nos EUA e que regressaram à Alemanha nesse período, foram completamente “engolidos” pela ideologia nazi ao ponto de se recusarem a cumprimentar sequer antigos amigos judeus quando estes os aguardavam em visita aos EUA.
O conjunto de incidentes estranhos e inadequados, reflexo da lavagem ao cérebro pela qual aqueles alemães passaram tal como se tratasse de uma religião, levou Kathrine Kressmann Taylor a dedicar-se ao estudo da ideologia nazi tendo em conta que nos EUA mal se sabia daquilo que estava a acontecer na Alemanha no final dos anos 30.
É neste contexto que surge Desconhecido Nesta Morada, um pequeno livro que se lê numa hora e que antecipa os horrores do holocausto perpetrados pelos nazis. Assim, a autora cria dois personagens, um judeu, Max, e outro alemão, Martin, que têm um negócio conjunto bastante próspero em São Francisco, relacionado com a venda de obras de arte e que se mantém mesmo quando Martin opta por regressar à Alemanha.
A história é-nos contada de forma epistolar dando-nos conta sobre o volume de negócios da empresa, assim como as diferentes visões dos dois amigos que rapidamente deixarão de o ser perante o evoluir da situação política na Alemanha tendo em conta a posição fortemente vincada face aos judeus gradualmente reflectida também na posição de Martin.
Se por um lado, numa fase inicial, Martin mostra-se duvidoso ante o aparecimento de um homem que passa a ser reconhecido como o salvador da Alemanha e o único capaz de voltar a erguer a cabeça do povo alemão diante do mundo tornando novamente a Alemanha numa grande nação, por outro lado mostra-se esperançoso e confiante diante dessa perspetiva.
Em meses, a relação entre estes outrora amigos, azeda por completo, agravando-se no tom e na atitude de Martin perante Max.
A simplicidade e a forma inteligente com que este pequeno grande livro está escrito deixa-nos verdadeiramente agarrados à história que tratando-se de ficção não deixa de ter os elementos essenciais que marcaram aquele período tão negro da História da Humanidade.
A história vai avançando com a troca de cartas entre São Francisco e Munique até ao derradeiro volte-face (in)esperado culminando com um simples “Desconhecido Nesta Morada” que deu título à obra.
Tendo sido publicado em 1938 nos EUA, o livro serviu de chamada de atenção para o que estava a acontecer na Europa ao povo judeu contribuindo, deste modo, para o despertar consciências. O livro foi publicado em Portugal em 2002 pela Gótica encontrando-se atualmente esgotado.
Excertos:
Carta de Martin dirigida a Max de 25 de março de 1933
“O homem é realmente electrizante, forte como só um grande orador e um fanático o podem ser. Mas pergunto a mim próprio: será que ele não é louco? Os seus esquadrões de camisas castanhas saíram da ralé. Pilham e lançaram-se numa feia caça aos judeus. (…) Está-se a levantar uma vaga – uma verdadeira vaga. Por toda a parte as pessoas despertaram. Sente-se isso nas ruas e nas lojas. O antigo desespero foi atirado para o lado como um casaco gasto. As pessoas deixaram de andar embrulhadas em vergonha; voltaram a ter esperança. Talvez seja possível descobrir uma solução para esta pobreza. Alguma coisa, não sei o quê, está para acontecer. Encontrou-se um chefe! Se bem que de mim para mim eu pergunte: um chefe sim, mas para onde? A vitória sobre o desespero leva-nos muitas vezes para caminhos de loucos.
Em público, naturalmente, não manifesto as minhas dúvidas. Sou agora uma personalidade oficial e um colaborador do novo regime e na verdade mostro-me exuberante ao máximo. Todos nós, os funcionários, e quem tem algum amor à pele, apressámo-nos a aderir ao Nacional-Socialismo. É esse o partido de Herr Hitler. Mas devo dizer que não é um mero expediente, há nisto mais alguma coisa, um sentimento de que nós, o povo alemão, encontrámos o nosso destino e de que o futuro avança na nossa direção como uma vaga poderosa.
(…)
Desde que cá cheguei [Munique] vi estas pessoas da minha raça, e compreendi os sofrimentos que passaram, estes anos com o pão a escassear cada vez mais, os corpos mais magros, a esperança a desaparecer. Apanhados nas areias movediças do desespero, atolados até ao pescoço. E então quando estavam prestes a perecer, apareceu um homem que lhes estendeu a mão para os salvar. Tudo o que agora sabem é que não vão morrer. Vivem a histeria do salvamento, quase o adoram. Mas quem quer que fosse o salvador, teriam feito a mesma coisa. Deus queira que seja um verdadeiro chefe e não algum anjo negro que eles sigam tão ligeiramente.” (pp. 44-46)
Carta de Martin dirigida a Max de 9 de julho de 1933
“A raça judia é uma chaga dolorosa em qualquer nação que lhes dê abrigo. Nunca tive ódio a nenhum judeu individualmente, a começar por ti que sempre estimei como amigo, mas podes crer que é com toda a franqueza que te digo que gostava de ti não devido à tua raça, mas apesar dela.
O judeu é o bode expiatório universal. (…) Quem me dera poder mostrar-te, poder fazer com que visses… o renascimento desta nova Alemanha guiada pelo nosso Amado Chefe! Um povo tão grande não podia jazer eternamente subjugado pelo mundo. Vivemos catorze anos de cabeça baixa com a derrota. Comemos o pão amargo da vergonha e bebemos o magro caldo da pobreza. Mas agora somos homens livres. Levantamo-nos certos da nossa força e de cabeça erguida perante as nações. Purgamos o nosso sangue de todos os seus elementos impuros.” (pp. 58-59)
O tema da lavagem ao cérebro e das alterações de comportamento daí decorrentes é sempre interessante. Embora, neste caso, seja também um pouco arrepiante, dadas as proporções e consequências que essa lavagem ao cérebro teve na História recente. E ainda mais se nos lembrarmos que a possibilidade de algo semelhante vir a repetir-se não está excluída…
É verdade, Sónia, daí este pequeno livro ajudar-nos a compreender como se molda o pensamento perante uma poderosa campanha de marketing político como aquela que esteve por trás da ideologia nazi.
E porque não sabemos o que nos reserva o futuro e porque também devemos aprender ãs lições devidas da História, nunca é demais recordar as atrocidades cometidas durante a 2ª Guerra Mundial para que não voltem a repetir-se em nome de toda a Humanidade.